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12 fevereiro 2015

Contos #5: O buquê - Lauren Myracle


Já faz um tempo que eu postei um conto chamado A pata do macaco, lembra? Pois é, o conto a seguir foi inspirado nele embora esse traga uma abordagem mais romantizada que eu, sinceramente, não curto muito, e faz parte do livro Formaturas Infernais.
Boa leitura!

O buquê
Lauren Myracle

Lá fora, o vento chicoteava a casa de Madame Zanzibar, fazendo com que a calha batesse contra a parede. O céu estava escuro, apesar de ainda serem 16h. Dentro da sala decorada de forma extravagante, três abajures brilhavam densamente, cada um envolto por cachecóis perolados.
Um tom de rubi iluminava o rosto redondo de Yun Sun, enquanto que a luz sarapintada de roxo e azul conferia a Will um ar de morte recente.
— Está parecendo que você acabou de sair do caixão — disse eu para ele.
— Frankie — me repreendeu Yun Sun. Ela inclinou a cabeça na direção da porta fechada do escritório da Madame Z, indicando que não queria que o meu comentário fosse ouvido. Um macaco vermelho de plástico estava pendurado na maçaneta, o que significava que Madame Z estava com clientes. Nós éramos os próximos.
Will deixou que seu olhar se perdesse no vazio.
— Eu sou um alienígena — disse ele, gemendo. Ele esticou os braços na nossa direção. — Quero seus corações e fígados.
—Ai, não! Um alienígena tomou o corpo do nosso querido Will! — Apertei o braço de Yun Sun. — Rápido, dê o coração e o fígado para que ele deixe Will em paz!
Yun Sun puxou o braço.
— Isso não tem graça nenhuma — disse ela com um tom de voz melodioso e ameaçador. — E se vocês não me obedecerem, eu vou embora.
— Deixe de ser tão certinha — respondi.
— Eu e minhas coxas gigantescas vamos nos retirar. Não duvide.
Yun Sun tem achado que as suas pernas estão muito gordas, só porque o vestido super justo que ela escolheu para a formatura precisou ser um pouco afrouxado. Pelo menos ela tinha um vestido de formatura. E uma grande chance de usá-lo.
— Blablablá — eu disse de volta. O mau humor dela estava colocando o nosso plano, o único motivo para estarmos ali, em risco. A noite da formatura estava cada vez mais perto, e eu não ia ficar que nem uma infeliz sentada sozinha em casa enquanto todos estariam cheios de brilho dançando alegremente com seus saltos altos espetaculares. Eu me recusava a passar por isso, ainda mais porque eu sabia lá no fundo do coração que Will ia me chamar. Ele só precisava de um empurrão. Abaixei o tom da voz para falar com Yun Sun e sorri para Will como se dissesse lá lá lá, conversa entre meninas, nada importante!
— Nós duas tivemos esta ideia, Yun Sun? Lembra?
— Não, Frankie, a ideia foi sua — disse ela sem abaixar a voz. — Eu já tenho o meu par, mesmo que as minhas coxas o esmaguem. Você é quem está esperando por um milagre.
— Yun Sun! — Olhei para o Will. Ele estava encabulado. Menina má, abrindo o jogo dessa forma. Má, má, e muito malcriada.
— Ai! — gritou ela depois de receber o meu tapa.
— Eu estou muito chateada com você — eu disse.
— Chega de timidez. Você realmente quer que ele chame você, não quer?
— Ai!
— Hum, meninas — disse Will. Ele estava fazendo aquela coisa fofa que ele faz quando fica nervoso. O seu pomo de Adão balança para cima e para baixo rapidamente. Na verdade... essa imagem era meio desagradável, pois ela me fazia pensar em Adão no Paraíso com Eva, e isso me lembrava maçãs, abocanhar
maçãs... Enfim, Will tinha mesmo um pomo de Adão, e quando ele movia a garganta para cima e para baixo era muito fofo. Ele ficava vulnerável.
— Ela bateu em mim — delatou Yun Sun.
— Ela mereceu — eu retruquei. Eu não queria, porém, que essa conversa continuasse. Aquela frase já havia revelado o suficiente. Achei melhor fazer carinho na perna nem um pouco gorda de Yun Sun e disse:
— Mas eu perdoo você. Agora cale a boca. 
O que Yun Sun não entendia — ou, provavelmente, o que ela entendia mas não compreendia — era que nem todas as coisas precisavam ser ditas em voz alta. Sim, eu queria que Will me chamasse para o baile de
formatura, e eu queria que ele fizesse isso logo, porque a “A primavera dos apaixonados” ia acontecer em duas semanas.
Tudo bem, o nome do baile era brega, mas a primavera era para os apaixonados. Isso era uma verdade inquestionável. Assim como era inquestionável que Will era o meu amor eterno e que seria bom se ele conseguisse superar a timidez e tomar uma droga de atitude. Chega de tapinhas no ombro, risadinhas e guerras de cosquinhas! Chega de ficar se agarrando e tremendo, colocando a culpa nos filmes de terror que assistimos, como Vampiros de Almas e O Iluminado. Será que Will não via éramos feitos um para o outro?
Ele quase fez a pergunta na semana passada, eu tive 95,5 por cento de certeza. Nós estávamos assistindo Uma linda mulher — um filme um tanto superestimado, porém divertido. Yun Sun tinha ido à cozinha para pegar biscoitos, deixando nós dois sozinhos.
— Hum, Frankie? — disse Will. Os pés dele estavam batendo no chão, e seus dedos apertaram a calça jeans.
— Posso perguntar uma coisa para você?
Qualquer idiota entenderia o que estava por vir. Se ele quisesse que eu aumentasse o volume, ele apenas diria “Ei, Franks, aumente o volume.” Casual. Direto. Sem necessidade de perguntas preliminares. Contudo, já que houve uma pergunta preliminar... bem, que mais ele poderia querer me perguntar além de “Você vai à formatura?” A alegria eterna estava ali, a poucos segundos de mim. E aí eu estraguei tudo. Seu nervosismo palpável me fez perder o controle, e em vez de deixar que o momento chegasse naturalmente, mudei de assunto de forma brusca. PORQUE EU SOU UMA IDIOTA.
— Ta vendo? É assim que se faz! — falei, apontando para a televisão. Richard Gere estava galopando em seu cavalo branco, que na verdade era uma limusine, até o castelo de Julia Roberts, que na verdade era um apartamento velho no terceiro andar. Na cena que assistíamos, Richard Gere aparecia no teto solar do carro e subia pelas escadas de emergência a fim de conquistar sua amada.
— Nada de papinho furado, de “eu acho que você é bonitinha” — continuei. Estava falando besteira, e eu sabia disso. — O negócio é agir, querido. O negócio é dar demonstrações de amor.
Will engoliu a saliva e murmurou um “Ah.” Ele olhou para Richard Gere com uma carinha de urso de pelúcia, pensando, certamente, que nunca conseguiria ser como ele, nunca mesmo.
Olhei para a televisão, ciente de que eu havia sabotado a minha noite de formatura com a minha própria estupidez. Eu não estava nem aí para “demonstrações de amor”; eu apenas ligava para o Will. Porém eu, brilhante que sou, o assustei. Porque no fundo, no fundo, eu estava sentindo mais medo do que ele.
No entanto, não seria mais assim — e era por isso que nós estávamos ali na Madame Zanzibar. Ela leria o nosso futuro, e, a não ser que ela fosse uma farsa, ela diria o que era óbvio para uma observadora imparcial:
que eu e Will fomos feitos um para o outro. Ouvir isso de uma forma bem sóbria daria coragem a Will para tentar de novo. Ele me chamaria à formatura, e, dessa vez, eu daria espaço, mesmo que isso me deixasse nervosa.
O macaco de plástico se mexeu na maçaneta do consultório.
— Olhe, está se movendo — sussurrei.
— Ih... — disse Will.
Um homem negro com cabelo cor de neve saiu do consultório arrastando os pés. Ele não tinha os dentes, o que fazia com que a metade inferior de seu rosto ficasse muito enrugada, como uma ameixa seca.
— Crianças — disse ele, tocando em seu chapéu. Will se levantou e abriu a porta da frente, porque ele era uma pessoa muito gentil. Uma rajada de vento quase derrubou o senhor, e Will o segurou.
— Nossa — disse Will.
— Obrigado, filho — respondeu o senhor. As palavras saíam um pouco abafadas, por causa da falta de dentes.
— Melhor eu me apressar antes que a tempestade comece.
— Parece que já começou — disse Will. Do outro lado da rua, galhos se moviam violentamente, fazendo muito barulho.
— Este ventinho de nada? — disse o senhor. — Ah, convenhamos, isso é só um bebezinho querendo mamar. Vai ficar muito pior quando anoitecer, pode escrever. — Ele olhou para nós. — Inclusive, crianças, não era para vocês estarem em casa, na segurança do lar?
Era difícil ficar ofendida quando um senhor sem dentes lhe chamava de "criança" — mas por favor, era a segunda vez em vinte segundos.
— Nós estamos no primeiro ano do ensino médio — respondi, — nós sabemos nos cuidar.
A risada dele me fez pensar em folhas mortas.
— Tudo bem, então — disse ele. — Vocês que sabem.
— Ele deu passinhos pequenos até a varanda. Will acenou e fechou a porta.
— Pessoa maluca — disse uma voz atrás de nós. Ao nos virarmos, vimos Madame Zanzibar na porta do consultório.
Ela usava calças de moletom rosa choque da Juicy Couture com um top da mesma cor, cujo zíper estava aberto até a altura das clavículas. Seus seios eram redondos, firmes e incrivelmente enxutos, considerando que ela não estava vestindo sutiã. Ela usava um batom laranja claro que combinava com as suas unhas e com a guimba do cigarro que já estava terminando entre os seus dedos.
— Então, nós vamos entrar ou vamos ficar aqui fora? — perguntou ela para nós três. — Vamos desvendar os mistérios da vida ou deixá-los quietos onde estão?
Eu me ergui da cadeira e puxei Yun Sun comigo. Will fez o mesmo. Madame Z nos mandou entrar logo, e nós três sentamos juntos em uma poltrona estofada. Will percebeu que não cabíamos ali e foi sentar-se no chão. Me mexi para que Yun Sun me desse mais espaço.
— Viu? Elas são duas salsichas — disse ela, referindo-se às suas pernas.
— Chega para lá — comandei.
— Então — disse Madame Z, passando por nós e sentando-se atrás da mesa —, o que vocês querem?
Mordi o lábio. Como eu poderia explicar?
— Bem, você é médium, não é?
Madame Z soltou uma nuvem de fumaça.
— Nossa, Sherlock, o anúncio nas páginas amarelas lhe deu essa informação?
Fiquei encabulada, ainda que estivesse sentindo raiva. Minha pergunta havia sido uma forma de começar uma conversa. Ela tinha algum problema com inícios de conversas? Enfim, se ela realmente era médium, devia saber por que eu estava ali, certo?
— Bem... OK. Sim, claro, sei lá. Então eu acho que eu queria saber se...
— É mesmo? Fale logo.
Eu uni forças.
— Bem... eu queria saber se uma certa pessoa vai me fazer uma certa pergunta. — Não olhei para o Will, de propósito, mas ouvi a inspiração surpreendida dele. Ele não havia previsto aquilo. Madame Z pressionou a testa com dois dedos e deixou seu olhar se perder no nada.
— Amém — disse ela. — Hum, hum. Estou recebendo respostas confusas. Há uma paixão, sim — Yun Sun deu uma risadinha, e Will engoliu a saliva —, mas também há... como posso dizer? Fatores que complicam? 
"Poxa, muito obrigada, Madame Z", eu pensei. "Dá para ir mais a fundo nisso? Alguma dica de como resolver esse impasse?"
— Mas ele... quero dizer, a pessoa vai agir em relação a essa paixão? — Eu estava firme, apesar do nó no estomago.
— Agir ou não agir... eis a questão? — disse Madame Z.
— Sim, eis a questão.
— Ahhh. Esta sempre é a questão. E o que as pessoas devem se perguntar e... — Ela interrompeu a fala. O olhar dela voltou-se para Will, e ela ficou pálida.
— O quê? — perguntei.
— Nada — disse ela.
— Tem alguma coisa — retruquei. A performance do recebimento de mensagens do alem não estava me convencendo. Ela queria que acreditássemos que ficou possuída de repente? Que ela teve uma visão definitiva e poderosa? Até parece! Apenas responda a droga da pergunta! Olhando para mim com olhos vazios, ela disse:
— Se uma árvore cai em uma floresta e ninguém esta por perto para escutá-la, mesmo assim ela faz barulho?
— O quê? — eu respondi.
— É tudo o que tenho para lhe dizer. É pegar ou largar. — Ela parecia estar agitada, então resolvi aceitar. Mesmo assim, dei um olhar desconfiado para Yun Sun quando Madame Z não estava olhando. Will disse que não tinha uma pergunta específica, mas a Madame Z estava insistindo de forma estranha em dar uma mensagem para ele de qualquer maneira. Ela passou as mãos pela aura dele e pediu que tivesse cuidado com as alturas, o que era curiosamente apropriado, pois Will adorava escalar montanhas. A reação dele foi 
muito curiosa. Primeiro, suas sobrancelhas se elevaram, e depois uma nova emoção tomou o seu rosto, como se ele estivesse sentindo um prazer antecipado. Ele olhou para mim e ficou corado.
— O que está acontecendo? — perguntei. — Você está com aquele olhar de quem guarda segredo.
— Como é que é? — disse ele.
— O que você está escondendo, Will Goodman?
— Nada, eu juro!
— Não seja bobo, menino! — respondeu Madame Z. — Escute o que estou lhe dizendo.
— Ah, não precisa se preocupar com ele — eu falei —, ele sempre é impecável com a segurança. — Eu me virei para o Will. — Não é? Você vai escalar em algum lugar inusitado? Ou comprou algum equipamento novo?
— É a vez de Yun Sun — disse Will, — Vamos lá, Yun Sun.
— Você faz leitura de mão? — Yun Sun perguntou à vidente. Madame Z respirou fundo, e parecia não estar muito empolgada quando passou os dedos sobre a pele fofa do polegar de Yun Sun.
— Você vai ser tão bonita quanto se permitir — disse ela. E só. Aquelas foram as pérolas de sabedoria dela. Yun Sun parecia estar tão decepcionada quanto eu, e eu senti vontade de protestar a nosso favor. Fala sério! Uma árvore na floresta? Cuidado com as alturas? Você vai ser tão bonita quanto se permitir? Mesmo com os toques um tanto convincentes no ambiente assustador, nós três estávamos sendo enganados. Eu, em especial. No entanto, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, um telefone celular tocou na mesa. Madame Z pegou o aparelho e utilizou uma unha bem longa para apertar o botão e aceitar a ligação.
— Madame Zanzibar, a seu serviço — disse ela. Sua expressão mudou enquanto escutava a pessoa que falava do outro lado da linha. Ela ficou mais ativa e irritada.
— Não, Silas. Chama-se... sim, você pode falar sim, uma candidíase. 
Candidíase. Yun Sun e eu trocamos um olhar aterrorizado, mesmo que — não tinha como evitar — as duas estivessem contentes. Não porque Madame Z tinha uma candidíase. Eca. Era porque ela estava falando sobre isso com o Silas, seja ele quem ele fosse, enquanto nós estávamos ali escutando. Agora o nosso dinheiro estava valendo a pena.
— Diga ao médico que é a segunda vez neste mês — resmungou Madame Z —, preciso de algo mais forte. O quê? Para a coceira, seu idiota! A não ser que ele queira coçar para mim! — Ela se virou na cadeira giratória, colocando uma perna vestida de Juicy Couture em cima da outra.Will olhou para mim, seus olhos castanhos estavam bem abertos.
— Eu não vou coçar para ela — sussurrou ele —, me recuso!
Gargalhei, achando ótimo que ele estivesse fazendo gracinha. A experiência com a Madame Z não havia terminado como eu imaginara, mas quem sabe? Talvez aquilo tudo acabasse tendo o efeito esperado, afinal. Madame Z apontou para mim com a guimba do cigarro, ainda aceso, e eu abaixei o queixo em sinal de respeito. 
A fim de me distrair, me concentrei na coleção variada de coisas estranhas nas prateleiras. Um livro intitulado A magia do ordinário e outro chamado O que fazer quando os mortos falam — Mas você não quer ouvir. Cutuquei Will com o joelho e apontei. Ele fingiu que estava apertando o pescoço de alguém, e eu tive que engolir uma gargalhada. Logo acima dos livros, estava o seguinte: uma garrafa de veneno de rato, um monóculo antigo, um jarro cheio de unhas cortadas, um copo da Starbucks todo manchado, e um pé de coelho com garras. E na prateleira de cima havia uma... ah, que fofa.
— Aquilo é uma caveira? — perguntei ao Will. Ele sussurrou:
— Que maravilha.
— OK, pessoal — disse Yun Sun, desviando os olhos—, se aquilo realmente é uma caveira, não me importa. Podemos ir embora agora? 
Segurei a cabeça de Yun Sun com as minhas mãos e a virei para o lugar certo.
— Olha lá. Ainda tem até cabelo. 
Madame Z fechou o celular.
— Idiotas, todos eles — disse ela. A palidez havia desaparecido; aparentemente, a conversa com Silas a deixou um pouco sem jeito. 
— Ah, vocês acharam o Fernando!
— A caveira é dele? — perguntei. — É do Fernando?
— Ai, meu Deus — resmungou Yun Sun. 
— Voltou à superfície depois de uma enchente, no cemitério Chapei Hill — contou Madame Z. — Foi isso o que aconteceu com o caixão. Um trambolho de madeira horrível, provavelmente do início do século XX. Ninguém quis cuidar dele, então fiquei com pena e o trouxe para cá.
— Você abriu o caixão? — perguntei.
— Sim. — Ela parecia estar orgulhosa. Fiquei imaginando Madame Z com as calças da Juicy Couture roubando caixões.
— Esse treco ainda tem cabelo, é meio nojento — eu disse.
— Ele ainda tem cabelo — disse ela. — Respeito, por favor.
— Eu não sabia que cadáveres tinham cabelo, só isso. 
— Pele, não — disse Madame Z. — A pele apodrece logo no começo e, acredite, você não ia querer sentir o cheiro disso. Mas o cabelo? Às vezes, ele ainda continua a crescer mesmo depois que a pessoa faz sua passagem.
— Nooossa. — Eu estiquei a mão e desarrumei os cachos castanhos de Will. — Ouviu isso, Will? Às vezes, o cabelo continua crescendo.
— Incrível — disse ele. 
— E aquilo? — perguntou Yun Sun, apontando para uma cumbuca plástica que continha uma coisa avermelhada, parecia um órgão, flutuando em um líquido claro. 
— Por favor, não me diga que aquilo também veio do Fernando. Por favor. 
Madame Z deu um tapinha no ar como se quisesse dizer "Que ridículo".
—Aquilo é o meu útero. Pedi de volta para o médico depois da minha histerectomia.
— Seu útero? — Yun Sun parecia estar com nojo.
— Eu ia deixar eles jogarem no lixo? — disse Madame Z, — Claro que não!
— E aquilo? — Apontei para umas folhas secas que estavam na prateleira mais alta. Essa brincadeira de adivinha com os objetos estava muito mais divertida do que a própria consulta. Madame Z seguiu a direção do meu olhar. Ela abriu a boca e depois a fechou.
— Aquilo não é nada — disse ela, com firmeza, mantendo o olhar fixo no objeto. — E aí, a sessão terminou?
— Por favor — eu juntei as mãos como se estivesse rezando —, diga o que é.
— Você não quer saber — disse ela.
— Quero — respondi.
— Eu não quero — disse Yun Sun.
— Quer sim — retruquei. — E Will também quer, não é mesmo, Will?
— Não deve ser pior do que o útero — disse ele. 
Madame Z cerrou os lábios.
— Por favor? — eu implorei. Ela resmungou algo sobre adolescentes idiotas e que ela se recusava a ser culpada do que fosse acontecer. Então, ela se levantou e apalpou a última prateleira. Seus seios não se mexeram, ficaram firmes e rígidos embaixo do top. Ela pegou as folhas e as colocou na nossa frente.
— Ah — murmurei, — um buquê. Frágeis botões de rosas, cujas extremidades estavam marrons e finas como uma seda. Ramos de pequenas flores acinzentadas, tão secas que quase se desmantelaram pela mesa. Um laço vermelho flácido unia as flores.
— Uma camponesa francesa colocou um feitiço nele — disse Madame Z com um tom difícil de decifrar. Era como se ela estivesse sendo obrigada a falar aquilo, mesmo que não quisesse. Melhor. Era como se ela quisesse falar aquilo mas estivesse relutando contra isso.
— Ela queria mostrar que o amor verdadeiro era guiado pelo destino, e que qualquer um que tente interferir corre um grande perigo. 
Ela fez que ia guardar o buquê.
— Espere! — gritei. — Como funciona? O que ele faz? 
— Não vou contar — disse ela, decidida.
— "Não vou contar?" — eu repeti. — Quantos anos de idade você tem, quatro?
— Frankie! — disse Yun Sun.
— Você é igual a todas, não é? — disse Madame Z para mim. — Capaz de fazer o que for por um namorado, não é mesmo? Desesperada por um romance de tirar o fôlego, custe o que custar.Senti o meu rosto ficando quente. A verdade, no entanto, estava ali, exposta na mesa. Namorados. Romances. A esperança acesa em meu peito.
— Conte logo — disse Yun Sun —, senão nós não vamos conseguir ir embora daqui nunca.
— Não — insistiu Madame Z.
— Ela não pode, porque ela inventou isso — eu disse. 
Os olhos de Madame Z se acenderam. Eu a havia provocado, o que não era muito bom, mas algo me dizia que, qualquer que fosse a história, ela não a havia inventado. E eu queria muito saber o que era. Ela colocou o buquê no centro da mesa, onde ele ficou deitado, imóvel.
— Três pessoas, três desejos, um para cada — declarou Madame Z —, essa é a mágica.Yun Sun, Will e eu nos entreolhamos e começamos a rir. Era ridículo e, ao mesmo tempo, perfeito: a tempestade, a louca, e agora o pronunciamento agourento. No entanto, a maneira como Madame Z ficou olhando para nós fez com que nossas risadas fossem se apagando. A maneira como ela olhava para Will, em especial. Ele tentou ressuscitar o tom hilário.
— Mas então, por que você não o usa? — perguntou ele com um jeito de adolescente que quer ajudar.
— Eu usei — disse ela. O batom laranja era como uma mancha.
— E... seus três desejos se realizaram? — eu perguntei.
— Todos eles — disse ela com um tom monótono. 
Nenhum de nós sabia o que dizer.
— Mais alguém já usou isso? — perguntou Yun Sun.
— Uma outra senhora. Não sei quais foram os seus dois primeiros desejos, mas o último foi a morte. Foi assim que o buquê veio para mim. Nós ficamos sentados e tivemos que engolir nossa bobeira. A situação parecia irreal, e no entanto, ali estávamos.
— Cara, isso é assustador — disse Will.— Mas... por que você ainda tem isso — eu perguntei — se já usou os seus três desejos?
— Excelente pergunta — disse Madame Z após olhar para o buquê por alguns intermináveis instantes. Ela pegou um isqueiro azul-turquesa do bolso e o acendeu. Em seguida, ela tomou o buquê com determinação, como se estivesse fazendo algo que já devia ter feito há tempos.
— Não! — gritei, pegando o buque. — Deixe que eu fique com ele, se você não o quer mais!
— Nunca. Ele deve ser queimado.
Meus dedos se fecharam em cima das pétalas de rosas. Elas tinham a textura da bochecha enrugada de meu avô, a pele que eu sempre acariciava quando o visitava no asilo.
— Você está cometendo um erro — avisou Madame Z. Ela estendeu a mão para pegar o arranjo, e a puxou para trás rapidamente. Senti a mesma energia dentro de mim que havia sentido quando eu pedi que ela falasse sobre o buquê. Era como se ele tivesse algum poder sobre nós. O que era ridículo, é claro.
— Ainda há tempo de mudar o seu destino — argumentou ela.
— E qual seria o meu destino? — questionei. Minha voz travou. — Seria uma árvore caindo em uma floresta que eu, coitadinha de mim, não conseguiria escutar por causa dos meus fones de ouvido? 
Madame Z me encarou com os seus cílios grossos. A pele em volta deles era tão fina quanto papel crepe, e eu percebi que ela era mais velha do que eu havia imaginado.
— Você é uma menina grossa e sem educação. Você merece levar uma surra. — Ela se recostou na cadeira giratória, e eu soube — assim, no meio do nada — que ela havia se libertado do poder do buquê. Ou talvez o buquê tivesse deixado que ela fosse? — Fique com ele, é a sua decisão. Eu não me responsabilizo por nada.
— Como se usa? — eu perguntei. Ela suspirou. — Por favor — eu pedi. Não queria ser chata. Porém, aquilo era muito importante. — Se você não me explicar, vou fazer tudo errado. Eu provavelmente vou... sei lá. Destruir o mundo.
— Frankie... deixe isso para lá — disse Will.
Balancei a cabeça. Não havia como. Madame Z olhou para mim com um ar de desaprovação. Tudo bem.— Você o segura com a mão direita e fala o seu desejo em voz alta — disse ela. — Mas eu estou avisando, isso não vai acabar bem.
— Você não precisa ser tão negativa — eu disse. — Não sou tão idiota quanto você pensa.
— Não, você é bem mais idiota — concordou ela.
Will interferiu, pois esse era o seu papel. Ele detestava clima tenso.
— Então... você não o usaria novamente, caso pudesse?
Madame Z ergueu as sobrancelhas.
— Você acha que eu preciso de mais desejos?
Yun Sun deu um suspiro forte.
— Bem, eu com certeza preciso de um desejo. Peça que eu tenha as coxas da Lindsay Lohan, por favor?
Eu amava os meus amigos. Eles eram tão maravilhosos. Eu ergui o buquê, e Madame Z se engasgou e segurou o meu pulso.
— Pelo amor de Deus, garota — exclamou ela —, se você vai fazer um desejo, pelo menos faça um que seja válido!
— É, Frankie — disse Will —, pense na coitada da Lindsay. Você quer que ela fique sem as coxas?
— Ela ainda teria as canelas — eu argumentei.
— Mas elas ficariam soltas? Que produtor de filmes vai contratar uma mulher que só tem o tronco?
Dei uma risada, e Will pareceu estar satisfeito com ele mesmo.
— Ai, eca — disse Yun Sun.
A respiração da Madame Zanzibar estava acelerada. Ela pode ter desistido de insistir comigo, mas o medo dela ao me ver levantando o buquê não pôde ser controlado. Eu coloquei o buquê na minha bolsa-carteiro com cuidado para não amassá-lo. Depois, eu peguei minha carteira, paguei o dobro do que a Madame Zanzibar havia cobrado. Sem nenhuma explicação, apenas entreguei as notas. Ela as contou, e depois me examinou com um ar de cansaço."Tudo bem", era o que ela parecia dizer. "Só... fique atenta." 
Nós fomos para a minha casa pedir uma pizza, pois esse era o nosso ritual de sexta à noite. Sábados e domingos também, com bastante frequência. Meus pais estavam em licença sabática em Botsuana por um semestre, o que significava que o lar da Frankie era a central das festas. Só que nós não fazíamos festas de verdade. Apesar de todas as condições favoráveis: Minha casa era localizada a muitos quilômetros da cidade em uma estrada velha, sem vizinhos próximos para reclamar. No entanto, nós preferíamos a nossa companhia, com aparições ocasionais de Jeremy, o namorado de Yun Sun. Jeremy achava que Will e eu éramos estranhos. Ele não gostava de abacaxi na pizza dele, e não compartilhava o nosso gosto para filmes. A chuva batia com força no teto da picape de Will enquanto íamos pelas curvas fechadas do Restoration Bou-levard, passando pelo Krispy Kreme e o Piggly Wiggly, e pela torre de abastecimento de água da cidade, que se erguia até o céu em sua glória solitária. A cabine da caminhonete estava apertada com nós três lá dentro, mas não me importava. Eu estava no meio. A mão de Will tocava a minha perna quando ele ia trocar de marcha.
— Olhem, o cemitério — disse ele, inclinando a cabeça em direção ao portão feito de ferro a sua esquerda. — Será que devemos fazer um minuto de silêncio para o Fernando?
— Acho que sim — eu disse.
Um raio iluminou as fileiras de lápides, e eu pensei comigo mesma que os cemitérios eram lugares realmente muito sinistros e assustadores. Ossos. Peles apodrecidas. Caixões que às vezes eram desenterrados.
— Escolha alguma coisa divertida, hein? — eu falei, andando pelo hall.
— Não pode ser Jogos mortais? — disse Yun Sun. Me juntei a ela na sala e analisei a lista.
— Que tal High School Musical? Não tem nada de assustador em High School Musical.
— Você só pode estar brincando — disse Will, desligando o telefone. 
— A Sharpay e o irmão dela fazendo aquela dança sexy com as maracás não é assustador?
Eu gargalhei.
— Meninas, decidam vocês, e divirtam-se — disse ele. — Tenho coisas para fazer.
— Você vai embora? — disse Yun Sun.
— E a pizza? — eu perguntei.
Ele abriu a carteira, tirou uma nota de vinte dólares do bolso e colocou-a na mesinha de café.
— Vai chegar em 30 minutos. Fica por minha conta. Yun Sun balançou a cabeça.
— Repetindo: você vai embora? Você nem vai ficar para comer?
— Preciso fazer um negócio — disse ele.
Meu coração ficou apertado. Eu faria qualquer coisa para ele continuar ali, mesmo que fosse só por mais um pouco. Corri para a cozinha e tirei o buquê da Madame Z — não, o meu buquê — de dentro da minha bolsa.
— Pelo menos espere até eu fazer o meu pedido — eu disse.
Ele ficou surpreso.
— Tudo bem, faça o pedido.
Eu hesitei. A sala estava quentinha e aconchegante, a pizza ia chegar logo, e eu estava com os meus dois melhores amigos. O que mais eu poderia querer de verdade?
"Dã", disse a parte mais ambiciosa do meu cérebro. A formatura, é claro. Eu queria que Will me convidasse para ir com ele à formatura. Talvez fosse egoísmo ter tantas coisas e ainda assim querer mais, porém afastei este pensamento da minha cabeça.
"É só olhar para ele", pensei. Aqueles bondosos olhos marrons, aquele sorriso meio torto. Aqueles cachos ridiculamente angelicais. Toda a doçura e a bondade que Will representava.
Ele bateu na perna para imitar o som de tambores rufando. Eu levantei o buquê.
— Quero que o menino que eu amo me convide para a festa de formatura — eu disse.
— E isso aí, pessoal! — exclamou Will. Ele estava eufórico demais. — E qual menino não gostaria de levar nossa fabulosa Frankie à formatura? Agora nós temos que esperar e ver se o desejo dela vai...
Yun Sun o interrompeu.
— Frankie? Tudo bem?
— Ele se mexeu — eu disse, me afastando do buquê que eu havia jogado no chão. Eu estava suando frio.— Juro por Deus, ele se mexeu quando eu fiz o pedido. E esse cheiro! Vocês estão sentindo?
— Não — disse ela. — Que cheiro?
— Você está sentindo, Will. Não está?
Ele sorriu, ainda com o jeito frenético que ele estava mostrando desde que... bem, desde que a Madame Z falou para ele evitar as alturas. Um trovão soou, e ele empurrou o meu ombro.
— Daqui a pouco você vai dizer que as fadinhas do mal provocaram a tempestade, não vai? — ironizou Will. — Melhor! Você irá para a cama hoje, e amanhã dirá que tinha uma criatura corcunda e cadavérica na sua cama, com um sorriso malvado na cara!
— Cheiro de flores podres — eu disse. — Vocês não estão mesmo sentindo? Não estão brincando comigo?
Will tirou as chaves do fundo do bolso.
— Câmbio, desligo. E, Frankie?
— O quê?
— Não desista — disse ele —, coisas boas acontecem para os que esperam.
Fiquei olhando pela janela enquanto ele ia embora na caminhonete. A chuva caía pesada. Me virei para Yun Sun, sentindo alguma coisa muito estranha dentro de mim.
— Você ouviu o que ele disse? — Agarrei as mãos dela. — Ai, meu Deus. Você acha que isso significa o que eu acho que isso significa?
— O que mais isso poderia significar? — disse Yun Sun. — Ele vai chamar você para a festa de formatura! Ele só... sei lá. Está querendo fazer uma superprodução!
— O que você acha que ele vai fazer?
—Não faço ideia. Contratar um carro de som? Mandar um telegrama cantado?
Eu dei um grito. Ela deu outro. Nós duas pulamos de alegria.
— Tenho que admitir que o lance do desejo foi brilhante — disse ela. E em seguida deu um peteleco no ar para ilustrar o empurrão que Will precisava. — E a parte das flores podres? Muuuito dramático.
— Mas eu realmente senti o cheiro — disse.
— Rá-rá.
— Senti.
Ela olhou para mim e balançou a cabeça, surpresa. Depois, ela olhou para mim novamente.
— Bem, deve ter sido fruto da sua imaginação — disse ela.
— Deve ter sido — respondi.
Peguei o buquê do chão, segurando-o cautelosamente. Eu o levei para a estante e o coloquei atrás de uma pilha de livros, feliz por tirá-lo da minha vista.
Na manhã seguinte, desci pelas escadas na esperança ingênua de encontrar... sei lá. Centenas de M&Ms formando o meu nome? Corações rosinhas desenhados com espuma nas janelas? Em vez disso, encontrei um pássaro morto. Um corpo pequenino estava deitado no tapete da entrada, como se ele tivesse sido carregado pela água da chuva até a porta e batido com a cabeça ali. Eu o envolvi em um papel toalha e tentei não sentir seu peso delicado enquanto eu o colocava no lixo do lado de fora.
— Desculpa, passarinho, tão bonito e fofo — eu disse. — Voe para o paraíso. — Eu deixei o cadáver cair, e a tampa da lata se fechou com uma batida.
Voltei para a casa ao som do telefone tocando. Provavelmente Yun Sun, querendo notícias. Ela foi embora com Jeremy às onze na noite anterior, depois de me fazer jurar que eu ia contar para ela assim que Will tomasse a atitude ousada.
— Oi, querida — eu disse, depois de olhar para o identificador de chamadas e ver que, sim, eu estava certa. — Nenhuma novidade ainda, foi mal.
— Frankie... — disse Yun Sun.
— Tenho pensado na Madame Z, sabe. Aquela conversa toda de não mexer com o destino.
— Frankie...
— De que maneira o convite do Will pode me levar a alguma coisa ruim? — Fui até a geladeira e peguei uma caixa de panquecas congeladas. — Por acaso a saliva dele é ácida? Ou ele vai me trazer flores e uma abelha vai me picar?
— Frankie, pare. Você não assistiu o jornal da manhã?
— Em um sábado? Claro que não.
Yun Sun engoliu a saliva.
—Yun Sun, você está chorando?
— Ontem à noite... Will subiu na torre de abastecimento de água — disse ela.
— O quê?! — A torre de abastecimento devia ter uns 90 metros de altura, com uma placa aos seus pés proibindo qualquer pessoa de subir. Will sempre falou em subir ali, mas ele era tão atento às regras que nunca o fez.
— E as grades deviam estar molhadas... ou talvez tenha sido um raio, eles ainda não sabem...
—Yun Sun. O que houve?
— Ele estava pichando alguma coisa na torre, aquele idiota, e...
— Pichando? Will?
— Frankie, quer calar a boca? Ele caiu! Ele caiu da torre!
Eu segurei o telefone com força.
— Jesus. Ele está bem?
Yun Sun não conseguia falar de tanto que chorava. O que era compreensível, claro. Will também era amigo dela. Porém, eu precisava que ela falasse.
— Ele está no hospital? Eu posso ir visitá-lo? Yun Sun!
Eu ouvi um choro, e depois um som abafado. A Sra. Yomiko pegou o telefone.
— Will morreu, Frankie — disse ela. — A queda, a maneira como ele caiu... ele não sobreviveu.
— Como é que é?
— Chen está indo buscar você. Você vai ficar com a gente, está bem? Quanto tempo quiser.
— Não — respondi —, quer dizer... eu não... — A caixa de panquecas caiu da minha mão. — O Will não morreu. Ele não pode ter morrido.
— Frankie — disse ela, sua voz infinitamente triste.
— Por favor, não diga isso — implorei. — Por favor, não faça uma voz tão... — Eu não sabia como fazer para que o meu cérebro pensasse.
— Sei que você o amava. Todos nós o amávamos.
— Espere um pouco — eu disse. — Pichando? O Will não picha. Isso é uma coisa que um imbecil faz, não Will. 
— Nós vamos trazer você para cá. Aí nós conversamos.
— Mas o que ele estava pichando? — eu supliquei. — Por favor! Chame a Yun Sun!
Houve mais um som abafado. Yun Sun veio falar.
— Eu vou dizer — respondeu ela — mas você não vai gostar de saber. Uma sensação gelada se espalhou por mim e, de repente, eu não quis mais saber.
— Ele estava pichando uma mensagem. Era isso que ele estava fazendo lá em cima. — ela hesitou. — Dizia, "Frankie, você quer ir comigo na festa de formatura?"
Caí no chão da cozinha, ao lado da caixa de panquecas. Por que eu estava segurando uma caixa de panquecas?
— Frankie? — disse Yun Sun. Um som baixo e distante. — Frankie, você está aí?
Eu não estava gostando daquele som. Desliguei o telefone para fazê-lo desaparecer.
Will foi enterrado no cemitério Chapei Hill. Eu fiquei sentada, estática, durante todo o funeral. O caixão estava fechado porque o corpo de Will havia ficado muito desfigurado. Eu queria me despedir, mas como dizer adeus a uma caixa? Ao lado da cova, eu vi a mãe de Will jogar um punhado de terra sobre o caixão dentro do buraco onde ele ia ficar. Foi horrível, mas o horror parecia distante e irreal. Yun Sun apertava a minha mão. Eu não apertava a dela. Choveu naquela noite, uma chuva mansa de primavera. Imaginei o solo, úmido e frio em volta do caixão de Will. Pensei em Fernando, cuja caveira havia sido libertada por Madame Zanzibar depois que seu caixão fora retirado da cova. Lembrei que a parte leste do cemitério, onde Will havia sido enterrado, era mais nova e parecia ser mais agradável. E, claro, havia meios mais modernos de desenterrar caixões hoje em dia, mais eficientes do que homens com pás.
O caixão de Will não iria ser desenterrado. Era impossível. Fiquei com Yun Sun por volta de duas semanas. Ligaram para os meus pais, e eles pensaram em voltar de Botsuana, mas eu disse que não. Que diferença faria? A presença deles não traria Will de volta. Na escola, durante alguns dias, os alunos cochichavam e olhavam para mim quando eu passava. Alguns achavam que Will havia sido romântico. Outros achavam que ele havia sido um idiota.
— Uma tragédia — era o que diziam em tom de pesar.
Quanto a mim, eu perambulava pelos corredores como uma morta-viva. Eu teria faltado, mas eu acabaria sendo chamada pela coordenação e forçada a falar sobre os meus sentimentos. Isso não ia dar certo. O meu sofrimento era só meu, um esqueleto que ia me assombrar por dentro para sempre.
Uma semana depois da morte de Will, exatamente uma semana antes da festa de formatura, os alunos começaram a falar menos sobre o acidente e mais sobre vestidos e reservas para jantar e limusines. Uma menina pálida da sala de química do Will se irritou e disse que a festa de formatura devia ser cancelada, mas os outros disseram que não, que a festa deveria acontecer. Will ia preferir que fosse assim.Yun Sun e eu fomos consultadas, uma vez que éramos as melhores amigas dele. (E eu, afinal, mesmo que eles não tenham dito, era a menina por quem ele havia morrido). Os olhos de Yun Sun ficaram cheios de lágrimas, mas, depois de um momento de hesitação, ela disse que seria errado arruinar os planos de todo mundo, que ficar em casa lamentando não faria bem a ninguém.
— A vida continua — disse ela. Jeremy, seu namorado, concordou. 
Ele pôs o braço em volta dos ombros dela e a abraçou. Lucy, a presidente do comité de formatura, pôs a mão sobre o coração.
— É verdade — disse ela. Ela se virou para mim com uma expressão de dor. — E você, Frankie? Acha que estaria tudo bem?
Eu dei de ombros.
— Tanto faz.
Ela me abraçou, e eu me senti tonta.
— Bom, pessoal, vai rolar! — disse ela, dando pulinhos. — Trixie, de volta ao trabalho com as flores. Jocelyn, diga à mulher que entrega papéis que precisamos de cem fitas azuis, e não volte até fechar um bom negócio!
Na noite da festa, duas horas antes da hora marcada para Jeremy pegar Yun Sun, eu coloquei minhas coisas na minha bolsa e disse que estava indo para casa.
— O quê? — exclamou Yun Sun. — Não! — Ela desligou o secador de cabelo. A maquiagem dela estava em sua frente, na penteadeira. O glitter de corpo da Baby-cakes, o gloss sabor framboesa. O vestido estava pendurado na maçaneta da porta do banheiro. Era lilás, com um decote em V. Era lindo.
— Já deu — eu respondi, — Obrigada por me deixar ficar por tanto tempo... mas já deu.
Seus lábios ficaram caídos. Ela queria argumentar, mas sabia que era verdade. Eu não estava feliz ali. Isso nem era o problema de fato — eu não ia ficar feliz em lugar algum —, mas ficar andando para lá e para cá na casa dos Komiko estava me fazendo sentir presa, e Yun Sun estava se sentindo inútil e culpada.
— Mas esta é a noite da formatura — disse Yun Sun, — Não vai ser estranho ficar sozinha em casa na noite da formatura? — Ela se aproximou de mim. — Fique até amanhã. Não vou fazer barulho quando entrar, eu juro. Prometo que não vou ficar falando e falando sobre... você sabe. As fofocas e quem ficou com quem e quem desmaiou no banheiro das meninas.
— Você deve falar sobre essas coisas, na verdade — eu respondi. — Você deve ficar até tarde e entrar fazendo barulho e se sentindo meio tonta e muito feliz e tudo o mais. — Meus olhos se encheram de lágrimas, inesperadamente. — Você deve fazer isso, Yun Sun.Ela tocou o meu braço. Eu me afastei, tentando ao máximo disfarçar o movimento.
— Você também devia fazer isso, Frankie — disse ela.
— E... pois é. — Eu coloquei a bolsa no ombro.
— Ligue se precisar — disse ela. — Vou ficar com o celular ligado, até na hora da valsa.
— Pode deixar.
— E se você mudar de ideia, se decidir ficar aqui...
— Obrigada.
— E mesmo se você decidir ir na festa! Todos nós queremos você lá... sabe disso, não sabe? Não faz diferença se você não tem um par.
Eu pisquei. Ela não teve uma intenção ruim, mas o fato era que fazia toda a diferença que eu não tivesse um par, porque o par seria Will. E ele não estava comigo não porque ele gostasse de outra menina ou porque ele tivesse muito gripado, mas porque ele estava morto. Por minha causa.
— Ai, meu Deus... — disse Yun Sun. — Frankie...
Eu a afastei de mim. Não queria mais ser tocada.
— Tudo bem.
Nós ficamos ali em pé dentro de uma bolha.
— Eu também sinto falta dele, sabe — disse ela.
Eu fiz que sim com a cabeça e fui embora.
Voltei para minha casa vazia e descobri que a eletricidade não estava funcionando. Perfeito. Isso acontecia com mais frequência do que deveria acontecer: as tempestades noturnas derrubavam galhos, que caíam em cima de algum transformador, e toda a vizinhança ficava sem energia por várias horas. Ou a eletricidade morria sem razão alguma. Talvez muitas pessoas ligassem os seus aparelhos de ar-condicionado ao mesmo tempo e os circuitos acabavam ficando sobrecarregados, essa era a minha teoria. A teoria de Will era que tinham fantasmas, ha ha ha.
— Eles vieram para te assombrar — dizia ele com uma voz assustadora.
Will. 
Minha garganta ficou apertada.
Tentei não pensar nele, mas era impossível, então deitei que ele existisse dentro da minha mente. Preparei um sanduíche de pasta de amendoim que eu não comi. Fui para o andar de cima e fiquei na cama, deitada sobre os lençóis. As sombras ficaram mais profundas. Uma coruja piou. Olhei para o teto até que não conseguisse mais ver as teias de aranha.
No escuro, meus pensamentos vagaram por lugares indevidos. Fernando. Madame Zanzibar. "Você é igual a todas, não é? Desesperada por um romance de tirar o fôlego, custe o que custar". Foi aquila sensação de desespero que fez nascer o meu plano idiota de ir na Madame Zanzibar e o meu desejo ainda mais idiota. Foi isso que impulsionou o Will. Se ao menos eu não tivesse ficado com o maldito buquê!
Eu levantei. Meu Deus — o maldito buquê!
Peguei o celular e apertei o três, o número de discagem automática da Yun Sun. O um era para mamãe e papai; o dois para Will. Eu ainda não havia deletado nome dele, e agora não precisaria mais fazer isso.
—Yun Sun! — eu berrei quando ela atendeu.
— Frankie? — disse ela. Estava tocando "S.O.S.", da Rihanna, ao fundo. — Você está bem?
— Estou — eu respondi, — melhor do que bem! Quer dizer, estou sem luz, está um breu completo, e eu estou sozinha, mas tudo bem. Não vou ficar assim por muito tempo. — Eu ri e fui até o corredor.
— O quê? — disse Yun Sun.
Mais barulho. Pessoas rindo.
— Frank, eu mal consigo ouvir você.
— O buquê. Eu tenho mais dois desejos! — Fui correndo até lá embaixo, pulando de alegria.
— Frankie, o que você...
— Eu posso trazê-lo de volta, você não está entendendo? Vai ficar tudo bem de novo. Nós podemos até ir à festa!
A  voz de Yun Sun ficou séria.
— Frankie, não!
— Eu sou tão imbecil... por que eu não pensei nisso antes?
— Espere. Não faça isso, não faça o... — Ela parou de falar. Eu ouvi um "Opa", seguido por um pedido de desculpas e alguém dizendo "Ai, eu amo o seu vestido!" Parecia que todos estavam felizes. Eu estaria me divertindo junto com eles em breve.
Fui até a sala e parei na frente da estante de livros onde eu havia deixado o buquê. Passei a mão pelos livros e abri um espaço entre eles. Meus dedos encontraram algo macio, como pétalas.
— Pronto — disse Yun Sun. Os sons ao fundo haviam diminuído, como se ela tivesse saído do salão. — Frankie, eu sei que você está triste. Eu sei disso. Mas o que aconteceu com o Wiil foi apenas uma coincidência. Uma coincidência muito, muito terrível.
— Chame do que você quiser — respondi —, eu vou fazer o meu segundo desejo. — Tirei o buquê de trás dos livros.
Yun Sun ficou mais nervosa.
— Frankie, não, você não pode!
— Por que não?
— Ele caiu de uma altura enorme! O corpo dele ficou... Eles disseram que ficou... Foi por isso que ele ficou em um caixão fechado, lembra?
— Ele já está apodrecendo dentro do caixão há treze dias! — berrou ela.
— Yun Sun, isso é um comentário de muito mau gosto. Honestamente, se fosse Jeremy a voltar à vida, será que estaríamos tendo esta conversa? — Aproximei as pétalas do meu rosto, tocando-as delicadamente com os meus lábios. — Olha, preciso ir. Deixem um pouco de ponche para mim! E para Will! Ah, peça logo para fazerem mais ponche para ele, eu aposto que ele está absolutamente maluco de sede!
Fechei o telefone e levantei o buquê com as mãos.
— Desejo que Will fique vivo de novo! — eu berrei com convicção.
O cheiro de decadência tomou o ar. O buquê se encolheu, como se as pétalas estivessem sendo sugadas para dentro de si. Eu o joguei para longe automaticamente, como se estivesse espantando um zumbido perto do ouvido. Mas tudo bem. O buquê não era o importante. O mais importante era o Will. Onde ele estava?
Olhei em volta ridiculamente, esperando que ele estivesse sentado no sofá me observando com um ar de Você jogou um bando de flores secas no chão? Que boba!
O sofá estava vazio, uma forma fantasmagórica, reluzente ao lado da parede.
Fui até a janela e olhei para fora. Nada. Apenas o vento, movendo as folhas das árvores.
— Will? — eu chamei.
Nada, novamente. Um abismo enorme de frustração se abriu em mim, e eu me joguei na cadeira de couro do meu pai.
"Frankie, sua idiota. Idiota, boba, patética."
O tempo passou. Cigarras cantaram.
"Cigarras idiotas."
E então, bem baixinho, um barulho. E depois outro. Eu fiquei ereta. O som de pedrinhas na rua... ou talvez na entrada? Os barulhos ficaram mais próximos. Era um barulho cuidadoso e tinham um certo peso, como se algo estivesse sendo carregado.
Fiquei atenta para ouvir melhor.
Sim — um barulho a poucos metros da porta. Um barulho que era claramente de algo não humano.
Minha garganta se fechou quando as palavras de Yun Sun voltaram à minha memória. Deformado. Apodrecendo. Ela havia dito isso. Eu não havia prestado atenção antes. Agora era tarde demais. O que eu havia feito?
Dei um pulo da cadeira e voei para o hall de entrada, me protegendo do possível olhar de alguém — ou de alguma coisa — que quisesse tentar me ver pela janela. O que exatamente eu havia trazido de volta à vida?
Uma batida ecoou pela casa. Eu gemi, e rapidamente coloquei a mão sobre a boca.
— Frankie? — chamou uma voz. — Eu, bem... ai. Estou meio desarrumado. — Ele gargalhou a mesma risada de sempre. — Mas estou aqui. Isso é o que importa. Estou aqui para levar você à festa de formatura!
— Nós não precisamos ir à festa de formatura! — respondi. Aquela voz trêmula era minha mesmo? — Quem precisa da formatura? Que bobagem!
— Ah, sim! Isso vindo da garota que mataria um por um encontro amoroso perfeito. — A maçaneta se mexeu. — Você não vai me deixar entrar?
Minha respiração ficou acelerada.
Havia vários barulhos de objetos caindo, como se fossem morangos podres sendo jogados na lata de lixo seguidos do comentário:
— Ih, cara. Que droga.
— Will? — sussurrei.
— Isso é meio bizarro... mas você tem removedor de manchas?
"Meu Deus. Ai, meu Deus."
— Você não está chateada, está? — perguntou Will. Ele parecia estar preocupado. — Vim o mais rápido que pude. Mas foi tão estranho, Frankie. Afinal, tipo...
Minha mente imaginou um buraco sem ar, lá fundo no chão. "Por favor, não", eu pensei.
— Deixe para lá. Foi estranho e ponto final. — Ele tentou animar o 
ambiente. — Você vai me deixar entrar, ou não? Estou caindo aos pedaços aqui!
Pressionei meu corpo contra a parede. Meus joelhos tremiam, eu não estava conseguindo controlar os músculos, mas lembrei que estava segura atrás da porta, que era bem sólida. Mesmo tendo mudado, Will ainda era feito de carne e osso. Pelo menos parcialmente. Ele não era um fantasma que podia atravessar as paredes,
— Will, você tem que ir embora — eu disse. — Cometi um erro.
— Um erro? Como assim? — O ar confuso dele partiu o meu coração.
— É que... ai, meu Deus. — Comecei a chorar. — Nós não somos mais perfeitos um para o outro. Você entende, não entende?
— Não, eu não entendo. Você queria que eu pedisse que você fosse comigo à festa de formatura, e eu pedi isso. E agora sem razão alguma... ahh! Entendi!
— Entendeu?
— Não quer que eu veja você agora! E isso, não é? Está nervosa por causa da roupa!
Será que era melhor eu concordar? Dizer que sim para que ele fosse embora?
— Frankie. Cara. Você não precisa se preocupar. — Ele gargalhou. 
— Primeiro, você é linda; e depois, comparada comigo, você vai estar simplesmente... sei lá, um anjo do céu.
Ele parecia estar aliviado com aquela explicação, como se tivesse encontrado uma lógica em uma coisa estranha, mesmo sem conseguir entendê-la profundamente. No entanto, agora ele sabia: era apenas Frankie tendo problemas com autoestima. Bobinha!
Ouvi um barulho, e depois uma batida na madeira. Meu corpo ficou tenso, porque eu reconheci aquele som.
"O depósito de leite — droga. Ele lembrou da chave no depósito de leite."
— Vou entrar — disse ele, batendo na porta da frente. — Tá, Franks? Porque, cara... assim... eu estou morrendo de vontade de ver você!
Ele gargalhou, em júbilo.
— Quer dizer, não é isso, essa frase caiu meio mal... mas, enfim, acho até que uma piadinha desse tipo hoje cai bem. Tudo está caindo hoje — e quando eu digo tudo, é tudo mesmo!
Corri para a sala, onde fiquei com os joelhos e as mãos apoiados no chão. Se ao menos não estivesse tão escuro!
A fechadura fez um barulho, e Will virou a chave. A respiração dele fazia um chiado.
— Estou indo, Frankie! — disse ele. — Ô, de casa! Estou indo o mais rápido que posso!
O meu medo atingiu tal ponto que me senti em um outro estado da realidade. Eu estava ofegante e berrando. Conseguia escutar a minha voz dentro de mim, e as minhas mãos tateavam o chão enquanto eu me arrastava.
A fechadura se abriu.
— Pois não? — brincou Will.
A porta deslizou por cima do carpete no mesmo instante em que os meus dedos encontraram o buquê.
— Frankie? Por que está tão escuro? E porque você não está...
Eu apertei os meus olhos com força e fiz o meu último desejo. Todos os sons se calaram, exceto pelo barulho do vento nas folhas. A porta, ainda terminando o trajeto lentamente, bateu contra a parede. 
Fiquei onde estava, no chão. Chorei porque meu coração estava se partindo. Não, meu coração estava completamente partido.
Depois de vários instantes, as cigarras mais uma vez emitiram o seu coro apaixonado. Fiquei de pé, cambaleei pela sala, e parei, tremendo, de frente para a porta aberta. Lá fora, a luz da lua iluminava a rua deserta.
Eu estava feliz por estar indo para casa. Fui de quarto em quarto acendendo todas as luzes enquanto Will pedia a pizza e Yun Sun vasculhava a lista de lançamentos em DVD da nossa locadora.

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